Botequim que se preza

Botequim 1

Post (0254)

Butiquim que se preza, ninguém sabe o endereço; só sabe chegar.

Butiquim que se preza deve ter razão social e nome fantasia. Mas estes devem ser solenemente ignorados pela clientela, que só se referirá ao estabelecimento pelo genitivo: “Bar do Zé”, “Buteco do Juca” etc.

Butiquim que se preza só tem um banheiro, unissex. Mas se tiver mais um, feminino, é imperativo que seja trancado e que a chave fique em poder da mulher do proprietário, responsável pela culinária da bodega.

Butiquim que se preza tem que ter um dono mal-humorado, tendente a grosso, de preferência português ou espanhol e a visita à cozinha é vivamente desaconselhado.

Butiquim que se preza tem limão e/ou gelo no mictório. Tolera-se a naftalina. Papel higiênico também tem que ser solicitado ao portuga.

Na arquitetura do butiquim que se preza, o balcão é de longe o elemento preponderante. Todos os demais devem estar em função dele, tem vitrine para exibir as iguarias produzidas pela cozinha local. Nesta, deverão estar permanentemente expostos, ao menos: algum ovo de coloração diferente da natural ou uma sardinha e/ou lingüiça preparadas minimamente com 24 horas de antecedência.

Cerveja, no butiquim que se preza, é Brahma. Só. Estúpidas. Vá lá uma Caracu,  não vende cerveja de lata, a não ser, em último caso, pra viagem.  Tem a pinga da casa, purinha, de alambique, de preferência num garrafão azul, mesmo que abastecido, religiosamente, com a pinga mais ordinária.

Butiquim que se preza tem seus solitários obrigatórios, onde tudo se discute. Nada se estabelece.

Butiquim que se preza não bate sol dentro em nenhuma hora do dia, nenhuma época do ano.

O repertório de copos do butiquim que se preza se resume ao indefectível americano, o longo e alguma espécie de abaulado, para os tomadores de conhaque.

Butiquim que se preza deve ter um cardápio enxuto, necessário e suficiente: os malfadados petiscos de vitrine, que mataram o guarda; tremoços, azeitonas e amendoins. Uma conserva de procedência duvidosa pode eventualmente ser bem vinda. Mais nada.

Butiquim que se preza todo mundo sabe o nome de todo mundo. Mas ninguém sabe o sobrenome de ninguém e deve guardar, na freqüência, desproporção de gênero da ordem de 10 para 1. Dez homens pra cada mulher, bem entendido.

Butiquim que se preza ostenta obrigatoriamente um nicho ou altar em honra ao protetor do estabelecimento, prevalecendo estatisticamente São Jorge e o Padre Cícero, deve tolerar as manifestações religiosas e artísticas esporádicas de seus frequentadores, sejam discretas batucadas de balcão, até ajuntamentos musicais de grandes proporções. Fazer o quê?

Butiquim que se preza deve vender, basicamente, além dos birinaites inebriantes e comidas insalubres, gêneros de primeira necessidade como cigarros, fósforos e cartões telefônicos. Não muito mais que isso, para evitar atrair a freqüência demasiada de estranhos ao ambiente.

Butiquim que se preza tem televisão com Bombril na antena, que será ligada única e exclusivamente nos horários de jogos de futebol envolvendo as agremiações locais ou o Escrete. E olhe lá.

Em butiquim que se preza, ninguém é “afro-descendente”, “de opção sexual diferenciada”, ou “portador de necessidades especiais”. Preto é preto, crioulo, negão; viado é viado, cego é cego, surdo é surdo, aleijado é aleijado. Sendo estes que o  frequentam não se sentem, por isso, ofendidos.

Butiquim que se preza deve conter cartazes com ditos edificantes para a educação do povo, tais como “a inveja é uma merda”, “fiado só para maiores de 80 acompanhado dos avôs”, que devem figurar ao lado do pôster do time do coração do bodegueiro.

Em butiquim que se preza, nada é proibido. Mas nem tudo é permitido.

Texto originalmente publicado por Bruno Ribeiro – resumido – NG Canela – Março de 2014




O meu computador

Veríssimo-BlogPost (0236)

Para começar, ele nos olha nos olha na cara. Não é como a máquina de escrever, que a gente olha de cima, com superioridade. Com ele é olho no olho ou tela no olho. Ele nos desafia. Parece estar dizendo: vamos lá, seu desprezível pré-eletrônico, mostre o que você sabe fazer.
A máquina de escrever faz tudo que você manda. Com o computador é diferente. Você faz tudo que ele manda. Ou precisa fazer tudo ao modo dele, senão ele não aceita. Simplesmente ignora você. Mas se apenas ignorasse ainda seria suportável. Ele responde. Repreende. Corrige.
Quando você o manda fazer alguma coisa, mas manda errado, ele diz “Errado”. Não diz “Burro”, mas está implícito. É pior, muito pior. Às vezes, quando a gente erra, ele faz “Bip”. Assim, para todo mundo ouvir. Comecei a usar o computador na redação do jornal e volta e meia errava. E lá vinha ele: “Bip!” “Olha aqui, pessoal: o burro errou!”.
Outra coisa: ele é mais inteligente que você. Sabe muito mais coisa e não tem nenhum pudor em dizer que sabe. Esse negócio de que qualquer máquina só é tão inteligente quanto quem a usa não vale com ele. Está subentendido, nas suas relações com o computador, que você jamais aproveitará metade das coisas que ele tem para oferecer.
A máquina de escrever podia ter recursos que você nunca usaria, mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só agüentava os humanos por falta de coisa melhor, no momento. E a máquina, mesmo nos seus instantes de maior impaciência conosco, jamais faria “Bip” em público.
Dito isto, é preciso dizer também que quem provou pela primeira vez suas letrinhas dificilmente voltará à máquina de escrever sem a sensação de que está desembarcando de uma Mercedes e voltando à carroça. Está certo, mas jamais teremos com ele a mesma confortável cumplicidade que tínhamos com a velha máquina.
Mas é fascinante. Agora compreendo o entusiasmo de gente como Millôr Fernandes e Fernando Sabino, que dividem a sua vida profissional em antes dele e depois dele. Sinto falta do papel e da fiel caneta Bic, sempre pronta a inserir entre uma linha e outra a palavra que faltou na hora, e que nele foi substituída por um botão, que, além de mais rápido, jamais nos sujará os dedos, mas acho que estou sucumbindo. Sei que nunca seremos íntimos, mesmo porque ele não ia querer se rebaixar a ser meu amigo, mas retiro tudo o que pensei sobre ele. Claro que você pode concluir que eu só estou querendo agradá-lo, precavidamente, mas juro que é sincero.
Quando saí da redação do jornal depois de usar o computador pela primeira vez, cheguei em casa e fiz um agrado na minha máquina. Sabendo que ela aguentaria sem reclamar, como sempre, a pobrezinha.
Texto de Luiz Fernando Veríssimo – Resumido – NG Canela – Dezembro de 2013