A vida tem sempre razão

 
Deliciosa Carta de Vinícius de Moraes para Tom Jobim,
mas que serve para todos nós!

“Caro Tonzinho, estou em Paris, num hotel com sacada sobre uma praça, que dá para toda solidão do mundo e diz:
Procura-se um amigo. Não precisa ser homem, basta ser humano, ter sentimento, ter coração. Precisa saber falar e saber calar no momento certo. Sobretudo, saber ouvir.
Deve gostar de poesia, da madrugada, de pássaros, do sol, da lua, do canto dos ventos e do murmúrio das brisas. Deve sentir amor, um grande amor por alguém, ou sentir falta de não tê-lo. Deve amar o próximo e respeitar a dor alheia. Deve guardar segredo sem sacrifício.
Não precisa ser puro, nem totalmente impuro, porém, não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e sentir medo de perdê-lo. Se não for assim, deve perceber o grande vazio que isso deixa. Precisa ter qualidades humanas. Sua principal meta deve ser a de ser amigo. Deve sentir piedade pelas pessoas tristes e compreender a solidão.
Que ele goste de crianças e lastime as que não se, puderam nascer e as que não puderam viver. Que goste dos mesmos gostos. Que se emocione quando chamado de amigo. Que saiba conversar sobre coisas simples e de recordações da infância.
Precisa-se de um amigo para se contar o que se viu de belo e triste durante o dia; das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças d’água, de beira de estrada, do cheiro da chuva e de se deitar no capim orvalhado. Precisa-se de um amigo que diga que a vida vale a pena, não porque é bela, mas porque já se tem um amigo. Deve ter um ideal e medo de
perdê-lo. Deve ser Don Quixote sem contudo desprezar Sancho. Precisa-se de um amigo para se ter consciência de que ainda se vive.”

É tão linda esta carta de amizade que resolvi enviar para meus amigos(as).

Cacho de uvas

“Certa manhã, um camponês bateu com força na porta de um convento. Quando o irmão porteiro abriu, ele lhe estendeu um magnífico cacho de uvas.”

– Caro irmão porteiro, estas são as mais belas produzidas pelo meu vinhedo. E venho aqui para dá-las de presente.

– Obrigado! Vou levá-las imediatamente ao Abade, ficará alegre com esta oferta.

– Não! Eu as trouxe para você.

– Para mim? Eu não mereço tão belo presente da natureza.

– Sempre que bati na porta, você abriu. Quando precisei de ajuda, porque a colheita foi destruída pela seca, você me dava um pedaço de pão e um copo de vinho todos os dias. Eu quero que este cacho de uvas traga-lhe um pouco do amor do sol, da beleza da chuva e do milagre de Deus.

“O irmão porteiro colocou o cacho diante de si e passou a manhã inteira admirando-o: era realmente lindo. Por causa disso, resolveu entregar o presente ao Abade, que sempre o havia estimulado com palavras de sabedoria. O Abade ficou mito contente com as uvas, mas lembrou-se que havia no convento um irmão que estava doente, e pensou: Vou dar-lhe o cacho. Quem sabe, pode trazer alguma alegria à sua vida.”

“Mas as uvas não ficaram muito tempo no quarto do irmão doente, porque este refletiu:  O irmão cozinheiro tem cuidado de mim, alimentando-me com o que há de melhor. Tenho certeza de que isto lhe trará muita felicidade. Quando o irmão cozinheiro apareceu na hora do almoço, trazendo sua refeição, ele entregou-lhe as uvas.”

– São para você. Como sempre está em contacto com os produtos que a natureza nos oferece, saberá o que fazer com esta obra de Deus.

“O irmão cozinheiro ficou deslumbrado com a beleza do cacho e fez com que o seu ajudante reparasse na perfeição das uvas. Tão perfeitas que ninguém para apreciá-las melhor que o irmão sacristão, responsável pela guarda do Santíssimo Sacramento, e que muitos no mosteiro viam como um homem santo. O irmão sacristão, por sua vez, deu as uvas de presente ao noviço mais jovem, de modo que este pudesse entender que a obra de Deus está nos menores detalhes da Criação. Quando o noviço o recebeu, o seu coração encheu-se da Glória do Senhor, porque nunca tinha visto um cacho tão lindo. Na mesma hora lembrou-se da primeira vez que chegara ao mosteiro, e da pessoa que lhe tinha aberto a porta; fora este gesto que lhe permitira estar hoje naquela comunidade de pessoas que sabiam valorizar os milagres. Assim, pouco antes do cair da noite, ele levou o cacho de uvas para o irmão porteiro.”

– Coma e aproveite. Porque você passa a maior parte do tempo aqui sozinho, e estas uvas lhe farão muito bem.

O irmão porteiro entendeu que aquele presente tinha lhe sido realmente destinado, saboreou cada uma das uvas daquele cacho e dormiu feliz. Desta maneira, o círculo foi fechado.

Texto extraído do livro O ZAHIR de Paulo Coelho.

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