A família

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– Família é um prato difícil de preparar.
– São muitos os ingredientes, reunir todos é um problema, não é para qualquer um.
– Os truques, os segredos, o imprevisível, às vezes, dá até vontade de desistir, mas a vida sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.
– O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares.  
– De súbito, feito um milagre, a família está servida.– Fulana sai a mais inteligente de todas, Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, Sicrano, quem diria? Sacou, endureceu, murchou antes do tempo.
– Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante, Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe, Ela, a mais apaixonada, A outra, a mais consistente.
– Pronto, já estão aí, todos os ingredientes! Ótimo.
– Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados, logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola, não se envergonhe de chorar, família é prato de difícil preparo que emociona e a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
– Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco, mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.
– Atenção também com os pesos e as medidas, uma pitada a mais disso ou daquilo e pronto: é um verdadeiro desastre. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
– Família é prato extremamente sensível.
– Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional, principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é uma verdadeira arte.
– Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
– O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. São muito raras.

-Não existe Família a Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda da Casa.

– Cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias doces.  Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas.
– Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
– Cozinhe em Banho Maria, e fogo baixo.
– Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
– A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia.
– A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança.
– Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer, servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
– Se puder saborear, saboreie, não ligue para etiquetas, passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no prato de barro.- Aproveite ao máximo.
– Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

Trechos do livro “O Arroz de Palma” de Francisco Azevedo resumido – NG Canela – Janeiro de 2013