Peripatético

Post (0098)

Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de treinadores. Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e tínhamos até um lema: “Para poder ensinar, antes é preciso aprender” (copiado, se bem me recordo, de uma literatura do Senai). Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um curso para cerca de 200 funcionários. Estava claro que o método convencional – Botar todo mundo numa sala – Não iria funcionar, já que o professor insistia na necessidade da interação, impraticável com um público daquele tamanho.

Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação voou longe do objetivo, até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um trecho do Sermão da Montanha como tema do evento. E o professor, que até ali estava meio quieto, respondeu de primeira. Aliás, pensou alto:

– Jesus era peripatético.

Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato pudesse ser quebrado por alguém com coragem para retrucar a afronta, dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião para dizer que o gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor. E lá se foi ele, deixando a sala à vontade para conspirar.

– Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto – Disse a Laura.

– Eu nem diria de mau gosto, eu diria ofensivo mesmo – Emendou o Jorge, para acrescentar que estava chocado.

– Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento – Ponderou o Sales, que era o mais ponderado de todos. – Mas eu até vejo uma razão para isso., É óbvio que ele é ateu.

– Não diga!

– Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a religiosidade alheia.

Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e, quando já o estávamos sentenciando à fogueira eterna, ele retornou. Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou falando:

– Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e colocar umas 20 pessoas em cada uma. É verdade que cada treinador teria de repetir a mesma apresentação várias vezes, mas. – Por que vocês estão me olhando desse jeito?

– Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de peripatético, veja bem.

– Certo! Foi daí que me veio a idéia. Jesus se locomovia para fazer pregações, como os filósofos também faziam, ao orientar seus discípulos. Portanto a sugestão de usar o Sermão da Montanha foi muito feliz.

– Peripatético quer dizer “o que ensina caminhando”.

E nós ali, encolhidos de vergonha.

Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que desconhecia a palavra que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples ida ao dicionário.

Isto é, para poder ensinar, antes é preciso aprender. Finalmente, aprendemos. Duas coisas.

– A primeira é que o fato de todos estarmos de acordo não transforma o falso em verdadeiro.

E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a ignorância é quase sempre unânime.

Artigo escrito por Max Gehringer publicados na Revista VOCÊ S/A – NG Canela – Agosto 2010




O Poder da Burrice

Post (0165)

“Duas coisas são infinitas: o universo e a burrice humana. Mas a respeito do universo ainda tenho dúvidas”, disse Albert Einstein. Componente inalienável da natureza humana, a burrice é, provavelmente, a força mais perigosa do cosmos.

– O que significa burrice?
– Uma definição convincente foi dada pelo historiador e economista italiano Carlo Cipolla: “Uma pessoa burra é aquela que causa algum dano à outra pessoa ou a um grupo de pessoas sem obter nenhuma vantagem para si mesmo – ou até mesmo se prejudicando.”
– Até mesmo os mais inteligentes tendem a desvalorizar os riscos inerentes à burrice. E ela é mais perigosa que a crueldade: esta, tendo uma lógica compreensível, pode pelo menos ser prevista e enfrentada.
– A burrice sempre ofereceu cenas e personagens cômicos, como no conto de Andersen “A roupa nova do imperador”, no qual dois alfaiates mal-intencionados convencem o rei a vestir uma roupa maravilhosa, invisível para as pessoas contradizer o soberano afirmando não ver a roupa (que de fato não existia). Só um menino teve a coragem de dizer que o rei estava nu, revelando a trapaça. Mas, atenção: rir da burrice pode deixá-la “simpática” e, portanto, desvalorizada. Se na ficção o estúpido é facilmente reconhecido, na vida real as coisas são diferentes.
– A burrice tem três características fundamentais:
1 – Ela é inconsciente e repetitiva: o burro não sabe que é burro e tende a repetir várias vezes o mesmo erro. Tais características contribuem para dar mais força e eficácia à ação devastadora da burrice. A pessoa estúpida não reconhece os próprios limites, fica fossilizada em suas convicções particulares e não sabe mudar. “Por isso, no âmbito clínico, a burrice é a pior doença, por ser incurável”.
2 – A burrice é contagiosa: as multidões são muito mais estúpidas que as pessoas que as compõem. Isso explica por que populações inteiras (como aconteceu na Alemanha nazista ou na Itália fascista) podem ser facilmente condicionadas a perseguir objetivos insanos.
3 – Além da coletividade, há um outro fator que amplifica a burrice: estar numa posição de comando. “O poder emburrece”. Por quê? Quando estão no poder, as pessoas muitas vezes são induzidas a pensar que, justamente por ocuparem aquele posto, são melhores, mais capazes, mais inteligentes e mais sábias que o resto da humanidade. Além disso, estão cercadas de aduladores, seguidores e aproveitadores que reforçam o tempo todo essa ilusão. Dessa forma, quem está no comando chega a cometer as mais graves faltas com a aprovação geral.

– Em cada um de nós há um fator de burrice que é sempre maior do que imaginamos. Isso não é, necessariamente, um problema. Ao contrário, a estupidez tem uma função evolutiva: serve para nos fazer agir precipitadamente, sem pensar muito, o que em certos casos se revela mais útil do que não fazer nada. A burrice nos permite errar, e na experiência do erro há sempre um progresso do conhecimento. Assim, o ponto-chave para anular a burrice está em reconhecer os próprios erros e se corrigir.

– Todos nós estamos prontos a admitir que sejam um pouco loucos, mas burros, jamais.

– E a capacidade de admitir nossos erros de avaliação? – Quase inexistente: estamos atados as nossas convicções como se elas fossem coletes salva-vidas. O que pedimos ao mundo não são novos desafios a nossas ideologias políticas e sociais. Preferimos amigos, livros e jornais que compartilham e confirmam nossos iluminados valores. Mas, cercando-nos de pessoas oportunistas, reduzimos a chance de que nossas opiniões sejam questionadas.
– Também nos vários setores da pesquisa, a burrice se apresenta pontualmente: os envolvidos tendem a considerar um estudo sério e convincente quando os resultados coincidem com seu ponto de vista; ou julgam-no ultrapassado e cheio de defeitos quando vão de encontro a suas expectativas.
– Há pessoas que chegam incrivelmente perto da verdade sobre si mesmas. Elas têm uma percepção equilibrada, são imparciais quando se trata de atribuir responsabilidades de sucessos e fracassos e fazem previsões realistas para o futuro.

– É claro que ser realistas e ao mesmo tempo serenos e otimistas seria o ideal; mas não há dúvida de que às vezes um pouco de burrice faz bem.

Publicado na Revista PLANETA edição 432 – NG Canela – Agosto 2010